O capitel coríntio como “modelo” no Românico Catalão: o caso do claustro de Sant Benet de Bages

The Corinthian Capital as a “Model” in Catalonian Romanesque: The Case of the Cloister at Sant Benet de Bages

 

 

 

Aline Benvegnú dos Santos

Universidade de São Paulo , Brasil

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Brasil

ealine.benvegnu.santos@gmail.com

 

 

Resumen

 

O claustro do mosteiro beneditino de Sant Benet de Bages, na Catalunha espanhola, é caracterizado pela grande quantidade e diversidade de elementos ornamentais esculpidos em seus capitéis, o que é um importante indício de como a ornamentação se constituía em tanto que instância fundamental para a estética medieval.

No entanto, até hoje poucas pesquisas foram realizadas sobre este claustro, o que é revelador da pouca atenção dada pela historiografia da arte tradicional ao tema da ornamentação. De modo geral, as imagens medievais mais valorizadas enquanto objeto de estudo são as historiadas. Isso em muito se deve à supervalorização da ideia de “Bíblia dos iletrados”, em detrimento de uma análise mais profunda sobre a presença estrutural e da complexidade dos diversos elementos que compõem as imagens, dentre os quais se destacam os elementos ornamentais. Os trabalhos existentes sobre o tema da ornamentação e sua presença nas imagens medievais são, com poucas exceções, superficiais, procurando categorizações estilísticas e raízes filológicas.

A partir de tal constatação, nosso objetivo na presente comunicação é discutir o conceito de “modelo” do capitel coríntio, especificamente com a noção de “renascimento do coríntio” no Românico Catalão, analisando como sua retomada possui motivações específicas e possibilidades diversas de significações no contexto em que se inseria.

 

Palabras-clave: Românico – Catalunha – Claustro – Ornamental e ornamentalidade

 

 

Summary

 

The cloister of the Benedictine monastery of Sant Benet de Bages, in the Spanish Catalonia, stands out for the large number and diversity of ornamental elements in its capitals, attesting the significance of ornamentation in medieval aesthetics.

Little research has been undertaken so far on this cloister, a fact that reveals the lack of interest showed by art historians in ornamentation, who are generally focus on the historiated images. This is greatly due to the overvaluation of the idea of images as the “Bible of the illiterate”, as the expense of a deeper analysis of the structural presence and complexity of the various elements that compose images, among which are the ornamental elements. Studies on the subject of ornamentation and its presence in medieval images tend to be superficial and restricted to stylistic categorizations, since these elements are considered to be additional and unnecessary and thus marginal for the understading of images.

Given this situation, our objective in this paper is to discuss the concept of “model” for the Corinthian capital, in particular with the notion of “Corinthian renaissance” in the Catalan Romanesque, by analysing how its revival has specific motivations and diverse possibilities of meaning in that context.

 

Keywords: RomanesqueCataloniaCloister – Ornamental and ornamentality

 

Recibido: 27/03/2017

Aceptado: 07/07/2017

 

O mosteiro de Sant Benet de Bages é atualmente um conjunto complexo de edifícios que revelam sua longa história construtiva. Um conjunto monumental que existe há um milênio não constitui, obviamente, uma obra unitária, devido ao acúmulo de diversas estruturas e seus usos que foram sendo construídos e modificados ao longo do tempo. O núcleo principal e original, no qual se situam as partes mais antigas (igreja e claustro românicos), é organizado segundo o modelo clássico do mosteiro medieval, ao redor do claustro.

O processo de construção, tanto de todo o edifício monacal quanto do claustro, especificamente, é marcado por vários momentos diferentes, além da incorporação de elementos de períodos diferentes da história do monastério. A galeria leste do claustro, nesse sentido, se mostra a nós como objeto de especial atenção, pois se difere de maneira expressiva das outras galerias. Isso porque, além de ser fruto de capitéis reempregados de momentos anteriores à construção do claustro do século XIII, possui capitéis que são classificados como de modelo coríntio.

A partir de tal constatação, procuraremos, no presente artigo, analisar as especificidades de tal galeria, nos centrando nas possíveis significações da retomada do coríntio enquanto modelo vindo da Antiguidade clássica no momento de construção do claustro, mas com a preocupação de, justamente, questionar a ideia de modelo enquanto “cópia”, buscando relacionar estes capitéis às dinâmicas locais do mosteiro e o contexto da região no qual ele se localizava.

 

O processo construtivo do edifício monacal

 

A historiografia tradicional que se debruçou sobre o monastério de Sant Benet de Bages divide o processo construtivo do edifício nos seguintes períodos (Sitjes i Molins, 1973: 75-83): pré-românico, ou primitivo, período de construção do primeiro edifício do mosteiro, entre os séculos X e XI; o românico, entre fins do século XI e primeira metade do século XIII; um período de transição entre o românico e o gótico, durante o século XIII; o gótico, nos séculos XIV e XV; o século XVI, marcado pela “decadência” monástica; o barroco, dos séculos XVII e XVIII; e as intervenções modernas, da primeira metade do século XX (Fig.1).

 

 

Fig. 1 – Plano do atual mosteiro de Sant Benet de Bages, especificando os períodos construtivos. Fonte: Sitjes i Molins, 1973.

 

Do período pré-românico, pouco resta. Mesmo com as pesquisas arqueológicas, as informações sobre a obra que existia quando da fundação do monastério, em 972, são muito escassas e incertas. É importante lembrar, aqui, que não existe certeza de como se articulavam as dependências monásticas dos séculos X e XI, visto que não se pode afirmar nem mesmo a existência de um claustro do românico primitivo. O edifício atual possui poucos vestígios das construções anteriores: há resquícios de bases de muros, encontrados em escavações, e alguns capitéis esculpidos, estes últimos localizados na galeria leste do claustro. Também se acredita que a base da estrutura do campanário data dos séculos X e XI, pois ele se configura como uma torre alta construída provavelmente em três campanhas diferentes: inicialmente a estrutura seria uma torre de defesa, sobre a qual foi levantada uma torre românica, no século XIII e, em tempos renascentistas, o conjunto recebera uma nova estrutura para os sinos, no topo.

O românico é o momento de construção do claustro e igreja que sobrevivem ainda hoje. A igreja românica, terminada por volta de 1212, é de planta de cruz latina, com uma nave de 25 m de longitude por 7,5 m de largura, coberta com uma abóbada ligeiramente ogival. O edifício possui três absides, sendo que o maior é visível a partir do lado de fora, enquanto que os laterais estão disfarçados na espessura do muro, o que é comum em outras igrejas da Catalunha que seguem o modelo occitano. As janelas e colunas deveriam conter capitéis esculpidos, mas toda a decoração interna foi alterada no século XVII, tendo sido substituída por colunas mais simples (sem capitéis esculpidos) e afrescos em estilo barroco (Español, 2001: 25-26). O portal principal da igreja, localizado em direção ao oeste, possui colunas com capitéis esculpidos, provavelmente um pouco posteriores aos capitéis do claustro, e seu tímpano não contem imagens. O portal não está centralizado na entrada da igreja: é deslocado devido à presença do campanário. Dentro da igreja, sob o altar, encontra-se a cripta onde, acredita-se, ficavam guardadas as relíquias de São Valentim. Hoje o acesso se dá por duas escadas laterais, que saem dos dois lados do altar, mas a entrada românica encontrava-se, provavelmente, em uma única escada no centro do altar.

Ao sul da igreja encontramos o claustro e as dependências monásticas românicas: na galeria leste existia a sala capitular, hoje derrubada, da qual se conservam duas janelas, com suas colunas e capitéis; no sul, haveria o refeitório e a cozinha e na ala oeste havia o dormitório dos monges.

Segundo alguns estudiosos do mosteiro de Bages, o seu claustro seria uma “obra de distintas épocas” (Villar, 2009: 86-87), ou seja, além do próprio edifício do monastério, algumas partes do claustro datariam também de processos construtivos diferentes. Até a década de 1970, alguns autores defendiam que o edifício da igreja e do claustro que ainda hoje persistem seriam a construção original, datada da fundação do monastério, no século X. Joseph Puig i Cadafalch acreditava que o claustro atual teria, na verdade, sido construído já entre os séculos X e XI, e sido progressivamente reformado, ou que pelo menos a galeria leste já existira no lugar onde se encontra hoje, podendo ter, inicialmente, funcionado como átrio da igreja – ao qual teriam sido anexadas as outras galerias no século XIII para a formação do claustro românico. Eduard Junyent lembra que: “A mescla de outros capitéis mais arcaicos entre estes primitivos, anteriores aos das galerias restantes, permitiu em tempos passados afirmar que a galeria oriental era o átrio mencionado na dedicação do cenóbio em 972” (Junyent, 1996: 61).1 Porém, os estudos arqueológicos mais recentes não permitem que tal hipótese se sustente, pois mostram que o claustro é fruto de um único impulso construtivo, levado a cabo entre os séculos XII e XIII, apenas com alguns elementos – capitéis e colunas – reaproveitados de construções anteriores, principalmente devido à unidade estilística dos capitéis das galerias norte sul e oeste (Español, 2001: 47-48).

O claustro é formado por quatro galerias, que comportam seis arcadas cada. Os claustros românicos em geral têm forma retangular, mas em Bages, devido à irregularidade do terreno, ele não forma um retângulo perfeito. As galerias têm as seguintes medidas (de comprimento): 12,5 metros na galeria leste, 14 metros na norte, 13 metros na oeste e 13,70 metros na sul (Sitjes i Molins, 1973: 53). Um dos ângulos do deambulatório possui a particularidade de estar em parte obstruído pelo transepto sul da igreja. Assim, as arcadas baixas e o deambulatório não muito extenso acentuam o fato de ser um claustro de pequenas dimensões.

As colunas que compõem as galerias se encontram em pares, com bases individuais e fuste de pequenas dimensões, lisos e cilíndricos – sua relação com o diâmetro é de 3,5 para 1, o que lhes dá uma característica robusta. Tais colunas têm uma alçada de 1,25 metros (excetuando-se as da galeria leste), dos quais correspondem de 30 a 37 cm o capitel, 58 a 68 cm o fuste e de 27 a 28 cm a base (Sitjes i Molins, 1973:54). As bases também são lisas, tendo a parte inferior quadrada e a superior arredondada – apenas duas bases da galeria sul possuem alguns detalhes esculpidos. Sendo o terreno onde o claustro foi construído ligeiramente inclinado, as bases das colunas se apoiam em estruturas desniveladas.

As galerias do claustro possuem 64 capitéis que se agrupam de dois em dois – coroando os pares de colunas – mas que possuem estruturas separadas, compartilhando apenas a mesma arquitrave. As arquitraves de cada par são de uma só peça, sendo que as das galerias norte, leste e oeste são lisas, enquanto as da galeria sul são esculpidas com elementos vegetais ou geométricos. Os capitéis que compõem as colunas apoiadas sobre os pilares de ângulo e pilares centrais de cada galeria encontram-se adossados à parede de cada pilar, de maneira que apenas três faces são esculpidas e visíveis.

Além desses 64 capitéis, adicionamos ao nosso corpus imagético os capitéis que se localizam em outras partes do claustro. São eles: os quatro capitéis das colunas das janelas da antiga sala capitular e os capitéis que coroam as colunas adossadas aos ângulos dos deambulatórios das galerias, dos quais dois se encontram no ângulo noroeste das galerias (um no muro do campanário e um no pilar de ângulo do jardim), um no muro do pilar do ângulo sudoeste e um no pilar do ângulo sudeste – os dos ângulos do deambulatório porque teriam sido feitos no mesmo impulso construtivo do início do século XIII e os das janelas da sala capitular.

Todos os capitéis são esculpidos e encontramos uma grande variedade de elementos: fitomórficos, entrelaços, animais, híbridos, figuras humanas e cenas tradicionais da iconografia cristã. O fato de os capitéis das galerias oeste, norte e sul possuírem as mesmas medidas, proporções e estilo escultórico, além de serem feitos da mesma pedra, reforça a tese de que teriam sido feitos em uma mesma campanha, apesar de autores como Joseph Puig i Cadafalch defenderem que dois grupos diferentes de artífices trabalharam nas esculturas mais recentes do claustro, pois algumas delas são muito mais “rústicas”, contrastando com aquelas que seriam mais “elaboradas” (Puig i Cadafalch, 1939).

O grande contraste está na galeria leste do claustro, pois ela é formada por capitéis procedentes de construções anteriores. O contraste de tais peças com as das outras galerias se dá não só pelo pior estado de conservação, mas também por traços estilísticos, tamanho e forma dos capitéis e pelo material utilizado, pois foram confeccionados em um tipo de pedra que parece muito mais porosa e maleável para a escultura (Puig i Cadafalch, 1939: 268)2 e, consequentemente, mais sujeita à ação do tempo.

Assim, quando da construção do claustro atual, finalizado no século XIII, todos os capitéis que poderiam ser reaproveitados foram colocados na galeria leste, enquanto que nas outras três os capitéis foram esculpidos em uma mesma campanha. Porém, apesar de posteriores, tais capitéis seguiriam o modelo geral daqueles da galeria leste, ou seja, seus temas seriam uma tentativa de cópia do que já existia anteriormente, de maneira que o claustro de Bages passa a ser classificado como um claustro do românico tardio (século XIII), mas de aparência arcaica, remetendo ao século XI (Sitjes i Molins, 1973: 57-58). Além disso, o claustro não apresenta um ciclo iconográfico explícito, pois possui poucas figuras humanas. A grande maioria de seus capitéis é classificada como “ornamental”, pois apresenta motivos vegetais, geométricos e entrelaços.

A historiografia trabalhou o processo construtivo do claustro do Sant Benet de Bages visando, em geral, utilizar a escultura de seus capitéis como indício para datação e buscando ligações estilísticas com outros mosteiros da região e do período. Tais dados são importantes, pois permitem o conhecimento das relações que o mosteiro pode ter estabelecido com outras regiões e quais seriam suas influências, mas nossa intenção de pesquisa é levantar outras questões a partir de tal processo. Neste artigo, nos centramos, dessa maneira, nos capitéis que foram classificados como de modelo coríntio, e buscamos entender sua função no conjunto dos capitéis do claustro, mas também sua relação com o contexto em que se inseriam no monastério e na história local.

 

 

A galeria leste do claustro de Sant Benet de Bages e o capitel coríntio como modelo

 

A partir do momento em que constatamos que os capitéis do claustro de Bages não são todos do mesmo período, surge o questionamento sobre a maneira como, em sua construção finalizada no século XIII, foram reapropriados e organizados elementos de construções anteriores.

Como visto anteriormente, a historiografia do românico catalão sobre o claustro de Sant Benet de Bages, em geral, estabelece que os capitéis do século X, alguns dos séculos XI e do XII, foram reempregados no edifício românico do século XIII, na galeria leste e nas janelas da sala capitular, e seu estilo foi copiado nos capitéis confeccionados nesse último período, pois há uma permanência estilística no tratamento dos motivos ornamentais e dos poucos personagens esculpidos (Villar, 2009: 86). Ou seja, é recorrente o uso de ideias que precisam ser problematizadas: a de reemprego, ou reutilização, e a de cópia a partir de um modelo, pois carregam uma forte carga conceitual que sugere a rigidez e falta de originalidade na confecção dos capitéis esculpidos.

 

Segundo Abella Villar:

 

O estilo tosco de muitos dos capitéis deste claustro, assim como o reaproveitamento, nele, de peças anteriores, levou, em certas ocasiões, a considerá-lo como uma obra de distintas épocas. Porém, nós pensamos que o claustro atual é fruto de um único impulso construtivo – levado a cabo durante o primeiro quarto do século XIII – onde alguns capitéis anteriores foram reaproveitados. (Villar, 2009: 86-87)3

 

Stijes i Molins, ao descrever a escultura dos capitéis do claustro por galeria, afirma que:

 

As outras galerias, a norte, oeste e sul, foram construídas em uma só etapa, mas tomam por modelo a galeria leste e, como esta havia adotado um modo arcaico, resulta que o claustro, de princípios do século XIII em sua maior parte, pode-se dizer, é um claustro que, como românico, considera-se muito tardio, pois recorda as obras do século XI, como era o pórtico de Manresa. (Sitjes i Molins, 1973: 57-58)4

 

Este último conceito – de modelo – é utilizado em diversos momentos: além da descrição dos capitéis românicos como cópia dos anteriores, ou de que os teriam tomado como modelo, também encontramos as ideias de que os capitéis de Bages seguiriam ou copiariam outros modelos do românico catalão, ou seja, há a noção recorrente de “circulação de artistas” e “transmissão de modelos”. Além disso, e podemos constatar na historiografia sobre o românico em geral, há uma defesa de que o capitel coríntio da Antiguidade era o modelo para os capitéis românicos.

Georges Gaillard sintetiza bem tal pressuposto de análise em sua tese doutoral Premiers essais de Sculpture Monumentale en Catalogne aux Xe et XIe siècle. Ao analisar os capitéis da galeria leste do claustro de Sant Benet de Bages, Gaillard os classifica pelo estilo no qual estariam confeccionados, em diversas famílias. As noções básicas que guiam sua análise são as de modelo, imitação e cópia:

 

As peças importadas ou estritamente copiadas da arte cordobesa devem ter sido pouco numerosas em Sant Benet de Bages, como em Ripoll, se julgamos pelo pequeno número que nos foi conservado e pelo fato de que, ao lado dessas produções diretas da arte andaluz, se encontram, logo em seguida, imitações muito próximas mas, contudo, diferentes, obras de artífices locais que trabalhavam com modelos estrangeiros. Elas merecem o nome de moçárabes, em razão da influência muçulmana preponderante que presidiu sua criação. São capitéis derivados do coríntio, como os capitéis omíadas, mas com formas menos puras. (Gaillard, 1938: 33)5

 

Percebemos como, para o autor, a escultura dos capitéis é analisada em função da necessidade de definir escolas e influências estilísticas, bem como a procedência dos artífices da obra. Em outro trecho, deixa clara a preocupação em encontrar as raízes filológicas e identificar a circulação de artistas:

 

Não pode haver dúvida sobre a família à qual pertencem esses dois capitéis: suas semelhanças com aqueles de Ripoll e de Córdoba são muito precisas para que possam se tratar de coincidências ou de influências longínquas. Eles são obra de um artista cordobês. (Gaillard, 1938:33)6

 

Tais pressupostos de análise nos levam a questionar os próprios conceitos empregados, para que se abram novas perspectivas de compreensão daquelas esculturas em seu meio, sua organização e relação com outros espaços, relacionando-as ao contexto social em que se encontravam.

Além da questão do reemprego, alguns dos capitéis que compõem a galeria leste e as janelas da sala capitular são classificados como “de tradição coríntia”, ou inspirados no capitel coríntio. Isso porque sua estrutura apresenta folhas de acanto e volutas, dispostos a partir do modelo do que seria o capitel coríntio tradicional. Os dois capitéis que seriam do século X – um na galeria leste e o capitel externo da janela sul da sala capitular (Fig.2) – inspirados nos capitéis da mesquita de Córdoba, são chamados de tipo coríntio pois apresentam dois níveis de folhas de acanto (que se projetam para fora) e um terceiro nível que termina em volutas nos ângulos do capitel e com uma pequena estrutura no centro do ábaco. Os outros três capitéis da janela da sala capitular seriam “cópias” destes (Fig. 3), pois apresentam formas “menos puras” XI (Sitjes i Molins, 1973: 71),7 e são também inspirados no modelo coríntio.

 

 

Fig. 2 – Capitel externo da janela sul da sala capitular, século X. Foto da autora.

 

Segundo Sitjes i Molins (1973: 57), dois outros capitéis – localizados ainda na galeria leste (Fig.4) – teriam também ascendência coríntia, mas a folhagem, elemento fundamental do capitel coríntio tradicional, teria desaparecido, tendo apenas restado os caulículos que terminam em volutas angulares. Uma observação atenta desses capitéis não parece nos indicar que haveria mais elementos esculpidos – folhas de acanto, sobretudo, como nos outros capitéis. Acreditamos que essa folhagem citada pelo autor catalão nunca tenha existido, mas ele afirma sua existência para poder classificar os capitéis como coríntios. Dessa maneira, para nós, o capitel teria sido esculpido da maneira como se apresenta, apenas com as volutas nos ângulos, o que não configura um erro do escultor nem uma defasagem gerada pelo tempo.

 

 

Fig.3 – Capitel externo da janela norte da sala capitular, século XI, “cópia”, em ângulos diferentes. Fotos da autora.

 

Como podemos observar, cada capitel apresenta detalhes específicos, o que permite que nos questionemos se eles seriam apenas uma tentativa de cópia ou se as variações e detalhes diferentes não seriam uma característica valorizada – e, inclusive, buscada – na confecção de tais capitéis.

Fig.4 – Capitel da galeria leste, século XI: ascendência coríntia, sem folhagem. Foto da autora.

 

Por exemplo, o capitel interno da janela norte da sala capitular (Fig. 5), possui as volutas claramente desenhadas e em alto relevo, mas elas não se projetam para fora do ângulo do capitel, como seria o modelo clássico. Vemos aqui um trabalho de variação, pois o elemento que deve existir está lá, mas trabalhado de maneira diferenciada, o que não nos indica necessariamente, como classifica a historiografia, que esse capitel fosse inferior aos outros.

 

 

Fig.5 – Capitel interno da janela norte da sala capitular, século XI, “cópia”. Foto da autora.

 

Eliane Vergnolle (1990: 21-34 passim.) observa que o capitel coríntio é o tema maior da decoração arquitetural românica, mas o interesse que os escultores românicos tem por esse tipo de capitel não reflete um gosto exclusivo por um modelo, pois encontramos tipos e variantes diversas. A abertura dos escultores românicos a uma grande variedade de soluções não é surpreendente, pois o hábito de reempregar capitéis e colunas antigos contribuíra para recolocar em questão o ideal antigo de “unidade” ligada à definição das ordens arquiteturais clássicas.

A presença em Bages de capitéis diferentes inspirados no coríntio e o fato de não serem completamente adequados ao que seria o coríntio canônico, com todas as suas partes e estruturas bem definidas, não indica nenhuma deformidade ou inabilidade dos escultores que os trabalharam: ainda segundo Vergnolle, o coríntio é escolhido por oferecer a possibilidade de variações e adaptações. O capitel coríntio não é retomado de maneira servil pelo românico e esse “renascimento do coríntio” não significou uma vontade generalizada de retorno ao antigo: os escultores românicos escolheram, dentre as soluções propostas pelo passado, aquelas que respondiam melhor a seus gostos e necessidades, pois as formas ricas e complexas dessa ordem de capitel –a riqueza vegetal, a complexidade de composição, o dinamismo do crescimento vegetal– permitiam trabalhar a diversidade e criatividade (Vergnolle, 1990: 22).

Nesse sentido, ainda segundo a autora, os capitéis trabalhados nesse estilo eram resultado do conhecimento livresco, pois os escritos de Vitrúvio e suas definições das ordens arquiteturais eram conhecidos e circulavam nos mosteiros medievais, mas também, e muito mais, da observação: os escultores observavam diversos capitéis e exerciam o que Vergnolle (1990: 28) chama de “cópia relativa”: havia um modelo de referência que não deveria ser completamente reproduzido, mas ter alguns de seus aspectos –aqueles que mais conviessem à intenção do escultor– apropriados e retrabalhados. Isso é possível porque existia uma liberdade dos escultores em relação aos modelos antigos e também a familiaridade com outros repertórios ornamentais e com a prática de outras técnicas.

O que vemos, assim, no românico, são reinterpretações cheias de inventividade, sobretudo porque o coríntio permite combinações vegetais variadas. Em geral, as volutas de ângulo e um motivo central esculpido no ábaco são mantidos, mas o princípio do crescimento vegetal orgânico é quase sempre retrabalhado de diversas maneiras e com diversas modificações: por exemplo, não há incompatibilidade entre a expressão do dinamismo vegetal e a perfeição abstrata do entrelaço, da mesma maneira que não existe contradição excludente entre o acanto e a palmeta, entre o mundo vivente e o do ornamento; os elementos do coríntio eram apropriados e deslocados, adquirindo uma nova coerência, graças ao dinamismo da estilística românica.

Como bem lembra Jean-Claude Bonne (2009), a varietas, o ideal de boa variação e valorização da inventividade dos capitéis românicos testemunha que não se trata de um renascimento relativamente fiel do antigo, mas sim de sua revisão plástica e simbólica – “uma renovatio do vegetal” (Bonne, 2009: 103) sob formas de uma tamanha inventividade que elas devem ser pensadas em termos positivos – e não em termos de degeneração de um modelo antigo.

Ao observarmos os capitéis “coríntios” do claustro de Bages, dos séculos X e XI, podemos ver que eles não são tentativas de cópia “mal sucedidas” ou mais “rústicas”. Os escultores, apesar de terem estilos diferentes e trabalharem em períodos diferentes, teriam a capacidade de fazer cópias quase idênticas – se essa fosse a intenção do trabalho. Mas a observação atenta mostra que o tamanho e disposição dos elementos nos capitéis são trabalhadas de maneiras que não parecem ter a intenção de serem os fazerem exatamente iguais entre si.

Muito provavelmente, tais capitéis estariam, antes da construção do claustro, localizados na abside da igreja pré-românica, perto do altar, pois, para a autora, o número de capitéis “coríntios” é o número adequado para os arcos das embocaduras de três absides, se lembrarmos que a ata de consagração de 972 utiliza o termo trifaria templi (Español, 2001: 22). Tais capitéis ocupavam um lugar sagrado e, para isso, precisariam ser adequadamente honrados para tal localização. Nesse caso, o coríntio, com sua significação honrosa e imperial, se adéqua convenientemente a tal função e ao lugar que ocupa. A diferença entre eles, se representasse um erro de confecção, impediria o seu emprego na igreja. Acreditamos, assim, que sua variedade e diversidade compõem a harmonia e honra que deveriam compor a abside da igreja e foram transferidos com tal característica à galeria leste do claustro, acrescida da honra que a antiguidade em relação às outras partes do claustro agora lhes conferia.

Há várias explicações para o que Vergnolle (1990: 23) chama de “renascimento do coríntio” e sua retomada possui motivações específicas em cada lugar: há a significação histórica mais geral de que o coríntio, “capitel imperial e romano por excelência”, no império carolíngio, seria uma das manifestações da renovatio imperii, a renovação do Império Romano, o que tinha uma clara significação política. Porém, em outras regiões, o coríntio parece ligado de uma maneira mais imprecisa ao passado, com significações ligadas a contextos locais. Ele não representa necessariamente uma vontade de renovatio do Império Romano, mas se constitui como uma referência mais geral aos grandes modelos imperiais, principalmente pela presença da folha de acanto, considerado o mais nobre elemento vegetal esculpido.8 Existe ainda a significação de uma vontade política de autoridade, mas ela é mais complexa e varia de acordo com o lugar e o período em que o capitel é colocado, associada a um conjunto de reminiscências do passado local.

A significação política da renovatio imperii, associada à questão das relações de poder locais e à significação honrosa e de nobreza que a própria forma do acanto conferia ao capitel, parece entrar em concordância com a interpretação que defendemos acima sobre o reemprego de elementos do passado como forma de manifestação do reforço da autoridade abacial no claustro. A nobreza daqueles capitéis, devida ao fato de eles carregarem todas essas cargas simbólicas do coríntio e serem spolia, possuidores de auctoritas que emana de sua participação nos primeiros tempos do monastério, é reforçada pela hipótese de que eles comporiam o mobiliário do altar da igreja. Além de que a própria variedade que o capitel coríntio permite valoriza o trabalho escultórico e a diversidade dos capitéis.

Todas essas características conformam a exclusividade da galeria leste ligada à importância da sala capitular e, para nós, mostram-se fundamentais no conjunto de todos os capitéis do claustro, pois demonstram como as relações estabelecidas com a tradição escultórica e arquitetônica eram ricas e complexas no românico e, sobretudo, nas relações que envolviam a confecção daquele claustro.

 

Conclusão

 

A partir dessa análise sobre a galeria leste do claustro de Sant Benet de Bages, acreditamos na necessidade de questionar a noção de que o românico seria baseado na “cópia” pura e simples de modelos estilísticos, sejam eles de períodos anteriores, ou de modelos que vinham de outras regiões. É importante perceber, como lembra Jean Wirth (1999: 67), que a cópia, no período medieval, não significa a cópia “servil”, mas é parte importante da composição dos repertórios imagéticos, pois os artistas fazem empréstimos a estilos anteriores para realizar suas composições.

Em Sant Benet de Bages, tais elementos e repertórios apreendidos são trabalhados não em uma lógica ou pré-determinada rigidamente, mas segundo um efeito (ou efeitos) que se procura gerar, aliado à criatividade dos escultores, que conseguem expressar bem essa diversidade e relação entre o passado e o contexto atual em que trabalhavam no claustro, como podemos observar pela não existência de padrões e aquilo que seriam “cópias” perfeitas, bem como pela harmonia criada com os elementos reempregados, que são ao mesmo tempo parte harmônica e atualizada no conjunto e diferentes pela sua especificidade material e carga simbólico-histórica, reforçando sua função na galeria leste.

Todas essas constatações nos parecem ir de acordo com a lógica de que havia uma íntima relação entre a materialidade do claustro e as relações sociais. No contexto de intercâmbios intensos que estruturam as relações sociais, acreditamos estarem presentes essas forças políticas: tanto o clero, manifestando um reforço de sua autoridade naquele ambiente, e também a nobreza, que não é apartada dele, mas tem presença fundamental na construção material e na configuração espiritual do lugar (sobretudo com os enterramentos).

Nesse sentido e a partir de tais questionamentos, acreditamos que todos os elementos esculpidos naquelas imagens possuem funções que trabalham juntas e fazem sentido ali, relacionadas entre si e com as funções daquele ambiente em seu contexto social.

Como vimos, todos os capitéis dessa galeria são resultados de reemprego, pois faziam parte de construções anteriores do cenóbio, funcionando como citação, dentro do pensamento exegético medieval, pois, retirados de seu contexto original, eram adequados convenientemente ao novo discurso que se produzia com sua utilização naquele espaço. Consequentemente, tais capitéis cumpriam aquilo que chamamos de “função de memória”, primeiramente porque remetiam aos tempos anteriores do mosteiro, lembrando que parte de sua glória vinha do fato de terem participado da longa história do cenóbio e também porque lembravam frequentemente aos monges, pela diferença visível que compunha aquela galeria, a autoridade que emanava da sala capitular.

Se retomarmos o princípio retórico da aemulatio, que era a capacidade de, tomando algo “velho”, de outro período, criar adequadamente algo novo da melhor maneira possível, mantendo o que havia de melhor do antigo, vemos que a galeria leste foi construída e pensada dentro da lógica retórica, pois os elementos mais antigos cumpriam perfeitamente a nova função de memória e honra em um setor específico do claustro.

Todos esses sentidos, atrelados à boa ordenação do conjunto dos capitéis do claustro, cumprem a função de memória nesse subgrupo específico, a qual consideramos que também pode ser classificada como função ornamental, pois, dentro da nova ordem pretendida e estabelecia, cria efeitos honrados e convenientes àquele espaço, se adequando ao espaço e à relação dele com a dependência monástica ligada àquela galeria: a Sala capitular e a autoridade que dela emanava.

 

Referências

 

Bonne, J.-C. (2009), “Le  vegetalisme de l’art Roman: naturalité et sacralité”, en Bagliani, Agostino P. (org.), Le monde vegetal. Médecine, botanique, symbolique, Florença: SISMEL edizioni del Galluzzo, pp. 95-139.

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Wirth, J. (1999), L’image à l’époque romane, Paris: Cerf.

 

1 “La mezcla de otros capiteles más arcaicos entre estos primitivos, anteriores a los de las restantes galerías pudo hacer afirmar en tiempos pasados que la galería oriental era el atrio mencionado en la dedicación del cenobio en el 972”. (Tradução nossa)

2 Para o autor, os capitéis mais antigos eram esculpidos numa pedra silicosa e pouco homogênea, proveniente da região de Calders, enquanto que aqueles mais modernos, do século XIII, eram feitos de uma pedra da própria região, mais compacta e resistente.

3 “El estilo tosco de muchos de los capiteles de este claustro, así como el reaprovechamiento en él de piezas anteriores, ha llevado en ocasiones a considerarlo como una obra de distintas épocas. Nosotros pensamos, empero, que el claustro actual es fruto de un solo impulso constructivollevado a cabo durante el primer cuarto del siglo XIII – en el que, eso , algunos capiteles anteriores fueron reaprovechados. Se trata de dos ejemplares que se hallan juntos en el ala oriental, cobijados bajo el mismo cimacio. Nos ocuparemos únicamente de ellos dos, porque pensamos que son los que más pueden ayudarnos a aclarar el proceso crono-constructivo del claustro”. (Tradução nossa)

4Aquestes altres galeries, les nord, oest i sud, van ser construïdes en una sola etapa, però prenent per model la de l’est, i, com que aquesta havia adoptat un mòdul arcaic, tenim que el claustre, de principis del segle XIII en la seva major part, és a dir, un claustre que, com a romànic, cal considerar molt tardà, ens recorda les obres de l’XI, com ara el porxo de Manresa”. (Tradução nossa)

5 Grifo nosso. “Les pièces importées ou strictement copiées de l’art corduan ont dû être peu nombreuses à Sant Benet de Bages comme à Ripoll, si l’on en juge par le petit nombre qui nous a été conservé et par le fait que, à côté de ces productions directes de l’art andalou, se trouvent tout de suite des imitations trés voisines mais différentes cependant, oeuvre des ouvriers locaux travaillant sur les modèles étrangers. Elles méritent le nom de mozarabes, en raison de l’influence musulmane prépondérante qui a présidé à leus création. Ce sont des chapiteaux dérivés du corinthien, comme les chapiteaux omeiyades, mais de formes moins pures”. (Tradução nossa)

6 “Il ne peut donc y avoir de doute sur la famille à laquelle appartiennent ces deux chapiteaux : leurs ressemblances avec ceux de Ripoll et de Cordoue sont trop précises pour qu’il puisse s’agir de coincidences ou d’influences lointtaines. Ils son l’oeuvre d’un artiste cordouan”. (Tradução nossa)

7 O autor chega a dizer que “A janela norte possui capitéis de tipo coríntio também, imitação bárbara dos califais ”. (La geminada nord te els capitells de tipus corinti também, imitació bàrbara dels califals)

8 Segundo Leon Pressouyre, a forma do acanto retrata o problema do Nachleben da forma antiga, pois ela adquiriu um significado simbólico que foi sendo reapropriado e adaptado aos interesses de cada contexto. Assim, mais do que no período greco-romano, sua forte carga simbólica teria sido superdesenvolvida nos períodos românico e neoclássico, pois era um motivo pertencia ao imaginário histórico que esses períodos retiraram do passado. Dessa maneira, o acanto sustentou a retórica de grandes empreendimentos hegemônicos, sendo eles propaganda política – caso da Renovatio imperii carolíngiaou o proselitismo religioso. (Pressouyre, 1993: 5-7).